Tradição e traição
“TRADIÇÃO” E “TRAIÇÃO” SÃO duas palavras de escrita e fonética tão semelhantes em nossa língua quanto o são interligadas em seu significado mais profundo. Tradição é a palavra que veio representar a tarefa do próprio instinto assumida pela consciência humana. Preservar-se como espécie, na dimensão da consciência, é estar atento aos ensinamentos sociais que se preocupam com a preservação do desígnio e sentido maior de nossa existência – a reprodução. São três as principais áreas que compõem a tradição: 1) a família como estrutura artisticamente moldada para melhor atender aos interesses reprodutivos em determinado contexto socioeconômico; 2) os contratos sociais fundamentais para a manutenção de uma convivência que propicie as melhores condições de preservação da vida e sua reprodução, e 3) as crenças engendradas para oferecer respaldo teórico e ideológico à preservação. O animal moral tem na tradição um instrumento fundamental para sua preservação.
O surgimento do fundamentalismo em nossos tempos é com certeza uma reação legítima a um mundo que quer mudar o eixo do desígnio coletivo para o do indivíduo. Consumir em vez de reproduzir é dar maior ênfase ao meio reprodutor do que ao fim reprodutivo. É priorizar o presente em detrimento do futuro. É poluir mais do que conservar. É, em suma, ameaçar um animal e com isso o ter acuado com toda agressividade e desespero de tal condição.
Tora e Propósito - Breishit Alef e Bet
Por outro lado, a traição é da ordem da transcendência. Abraão trai seu pai e sua cultura para estabelecer-se numa “terra que é sua”: as grandes traições se expressam na relação familiar, nos contratos sociais rompidos e nas “heresias” que desafiam as crenças da tradição. O próprio texto bíblico é composto de estranhas transgressões em meio a tantas assertivas de cumprimento à lei. O direito dos primogênitos na sucessão do pai no clã bíblico – verdadeira obsessão do texto – é, de episódio em episódio, preterido pelo direito do filho menor. Isaque transgride Ismael, Jacó transgride Esaú, Raquel transgride Lia e José transgride Judá. Nestes casos, não se trata de não se cumprir a lei, mas de transgredi-la, na medida em que o texto legitima tais atitudes e rende, na ausência de repreensão, sua conivência.
Transgredir é transcender, e nossa história não teria mártires no campo político, científico, religioso, cultural e artístico caso fosse possível transcender sem colocar em risco a sobrevivência da espécie. Mesmo a sede de poder, por nós apontada como grande vilã e impedimento para um mundo idealizado, não é tão aterradora para a tradição como a traição pela transcendência. Se por sede de poder alguém rompe com o senso comum da melhor ordem para a preservação e reprodução de nossa espécie, é um fora da lei. O traidor, por sua vez, é um transgressor. Ele propõe outra lei e outra realidade. Se alguém rompe com uma estrutura tradicional de família, se pode ser caracterizado como um perverso, este tem seu lugar garantido na sociedade. Ele é o que não se deve fazer. Ele tem uma função importante e terá suas regalias asseguradas enquanto assumir a condição de errado. Tal condição é particular e toda sociedade tem espaço para um certo número de casos. No entanto, se o rompimento com a estrutura familiar é acompanhado de um desejo de legitimação dessa conduta, esse indivíduo é inaceitável e um bom candidato ao martírio.
From: Una Noche de Libertad, La Hagada Latina para la Familia, Mishael e Noam Zion. Desenho de Michel Kichka,
O mártir é o que morre por todos nós. Sua transcendência inaceitável – e que não toleraríamos se fosse expressa na realidade de nosso cotidiano – é, ao mesmo tempo, um monumento à nossa possível imortalidade. Este é, na verdade, o conceito messiânico que busca criar um modelo tão poderoso quanto o de D’us – um emissário de D’us que é Ele mesmo que venha a expressar o mandamento de transgredir de forma tão determinada e rígida como o de reproduzir. O Messias[1] é o símbolo, na dimensão da consciência, da determinação evolucionária animal contida em seu próprio código genético. É preciso errar, infringir, violar e transgredir o status quo para que possa haver uma transcendência desejada pela própria tradição traída.
Da mesma forma que a tradição precisa da traição, que a preservação precisa da evolução, que o acerto de hoje dependeu do erro de ontem, o contrário também é verdadeiro. Porque a evolução só é possível quando existe uma manifestação para ser contestada, aviltada.
Auschwitz or Sinai? DAVID HARTMAN February 1, 2013
É óbvio que transgredir não é da ordem do positivo absoluto e todos sabemos que o herege de ontem é a possível mutação e evolução de hoje, mas pode também ser o câncer do dia. O animal de todos nós tem compromisso absoluto com a preservação, seja ela obtida através do ato de preservar ou de mudar. O problema, no entanto, está no fato de que é impossível mudar sem se expor ao erro absoluto. Muitas evoluções tiveram, ao longo do tempo, o “simples” custo do próprio desaparecimento. Mas o movimento é inexorável. A mutação é imperativa para a continuidade e ela jamais ocorrerá sem a tensão inerente ao fato de que o caminho da saúde poderá ser, na realidade, o da doença. O transgressor tem muito medo dessa percepção. Ele precisa da tradição e dos tradicionalistas para permitir suas incursões em determinado inferno ou paraíso.
O tradicionalista se apavora ao ver contrariada uma de suas máximas preferidas: sim, mexemos em time que está ganhando! Nosso desejo de criar uma condição perfeita para executar a tarefa de nos preservar é o medo do Gênese de que o ser humano queira construir fora do Éden o seu próprio Éden, onde todos os aspectos do jardim original sejam reproduzidos, com exceção de um: a possibilidade da transgressão. Triste o nosso destino de depender continuamente do
transgressor. O Messias que anuncia sua chegada será sempre mártir mesmo nas mãos dos transgressores. Isso porque, ao chegar, este se transformará de rei dos transgressores em rei dos tradicionalistas. Os transgressores não querem um senhor tradicional, nem os tradicionalistas um senhor transgressor. O Messias é o sonho, somente representado por todo aquele que é o transgressor adorado, imediatamente devorado, para que este mundo não seja nem apenas da ordem do de temos que fazer nem do que não devemos fazer. Não haverá tradição sem traição, nem traição sem tradição, como não pode haver integridade do animal sem evolução, nem evolução sem integridade do animal.